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sexta-feira, 18 de outubro de 2024

#026 | Consumidos pelo fogo, de Jaume Cabré

Autor: Jaume Cabré (Catalunha / Espanha)
Título Original: Consumits pel foc (2021)
Editora: Tinta da China
Edição: 1ª Edição, Setembro 2022 (134 págs.)
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Recebi este livro através de um Clube de assinatura da Tinta da China e foi o meu primeiro contacto com a escrita de Jaume Cabré.

Neste livro é-nos contada a história de Ismael (ou o homem a quem, na maior parte do tempo, devemos chamar Ismael).

Sinopse

Ismael teve uma infância difícil com um pai abusivo que o culpa pela morte da mãe: Ismael nasceu no dia mais frio do ano e, apesar da mãe ter falecido nove anos depois, o pai culpa-o desse acontecimento “…foi depois de tu nasceres que ela ficou tão fraquinha que acabou mesmo por morrer. Fica a saber que a culpa foi tua.”
Os dois têm uma relação difícil e a situação fica pior um dia em que Ismael visita o pai, na gasolineira onde trabalha e este, sem motivo aparente, lança um jato de gasolina ao filho. A partir desse momento o pai de Ismael é internado numa instituição psiquiátrica e Ismael passa a viver com um monitor – Àlex – e mais quatro companheiros de residência.
É neste ambiente em que Ismael cresce e se desenvolve, sendo estimulado e incentivado por Simó, um dos seus companheiros de quarto, a desenvolver o hábito da leitura.

Superando todos estes obstáculos, Ismael consegue estudar, revela-se bom aluno e acaba por se tornar se professor de línguas e literatura, culminando a sua vida adulta numa existência rotineira e pacata.

A sua vida parece mudar no dia em que lhe cai um botão da camisa e, numa retrosaria, reencontra uma antiga vizinha, amiga de infância – a Leo – aproximando-se dela e conhecendo, pouco a pouco, a felicidade.

O ponto de virada acontece num dia em que, num momento tão rotineiro como ir comprar pão, Ismael é interpelado por um antigo aluno – Tomeu – que refere dirigir-se a um simpósio de poliglotas. Prometendo apresenta-lo à Presidente, e garantindo que a participação nestes simpósios costuma render bastante dinheiro, Ismael aceita boleia de um antigo aluno. 

Depois disto, Ismael acorda confuso e atordoado num hospital, sem memória do que lhe aconteceu… e sem memória do seu próprio nome.


Com spoilers

Ismael está num hospital, a ser cuidado por uma médica e um enfermeiro que, frequentemente lhe lembram que ele bateu com a cabeça, precisa descansar, mas, aos poucos, vão tentando que ele se lembre de mais informações sobre si.

Ismael vai se recordando de nomes de personagens de livros, começando a tratar a médica por Drª Bovary, e, muito lentamente, começa a ter vislumbres do acidente com o antigo aluno, algo que omite dos seus cuidadores.
Os vislumbres são fragmentados, pouco coerentes e Ismael começa a ter receio de estar envolvido em algo mais do que um simples acidente. Teriam matado alguém? Além disso, o facto de não haver rasto de Tomeu, nem da documentação de ambos, também lhe começa a levantar suspeitas.

Uma noite, em que se sente com um pouco mais de forças, Ismael resolve levantar-se para ir ao WC sozinho. Contudo, ao sair do quarto, e avançando pelo corredor do hospital, descobre que este se trata, na verdade, de um armazém. Quem são então a médica e o enfermeiro que estão a cuidar dele? Como foi ele parar ali?
Descalço, com uma bata hospitalar e com um soro na mão, Ismael resolve fugir.
Percebe que está numa zona industrial, mas não se consegue localizar, até que encontra uma espécie de bar, anunciado com uma palmeira e uma figura humana em néon, que vai piscando numa intensa luz cor-de-rosa.
Quando se está a aproximar da porta, sai de lá uma mulher alta e aprumada que quase tropeça em Ismael.
A mulher tinha acabado de ser despedida, está furiosa, mas, depois de ouvir a história de Ismael e de muito hesitar, numa atitude de “que se lixe” resolve ajuda-lo e leva-lo para sua casa.

Vamos então acompanhando Ismael e Marlene na busca de pistas com base nas  poucas memórias que Ismael vai trazendo. Ficamos a conhecer um pouco mais sobre Marlene também, sabendo que ela canta e fala alemão – o que lembra a Ismael que ele também sabe línguas. Agindo como uma psicóloga, esta vai lhe fazendo perguntas e anotando possíveis pistas sobre quem é e o que aconteceu a Ismael.

A reviravolta

Uma noite, depois de realizarem um assalto (uma vez que Marlene estava desempregada e Ismael não possui qualquer dinheiro), Ismael começa a sentir-se angustiado e, de um folego, conta a Marlene tudo aquilo de que se lembra.

Tomeu avança em direção a um casarão e avisa Ismael que este terá que se lembrar bem do que a senhora disser. Confuso, Ismael questiona pelos poliglotas até que se apercebe que Tomeu está a agredir a idosa senhora, dona da casa, questionando pela palavra pass do Banque Trois. A idosa nega conhecer qualquer palavra pass e está cada vez mais assustada.
Ismael assiste a tudo aterrorizado, até que a senhora recita uma frase, que a Tomeu soa a uma série de números em francês. 
Tomeu aplica um golpe fatal na senhora e ambos fogem dali a alta velocidade 

“Desopilemos daqui. Explico-te no carro” (p. 103).

Ismael está furioso, aterrorizado e ameaça ir à polícia. Entretanto os dois começam a discutir, a viatura segue a uma crescente velocidade, até que se dá o acidente.

“In girum imus nocte.
- O quê?
- Foi o que disse a senhora (…)” (p.107)

Após concluir a história, Marlene questiona Ismael sobre o sentido daquelas palavras, confirma com ele que não representam números nenhuns e, por já estarem cansados, ambos combinam ir descansar e explorar melhor a questão no dia seguinte.
Quando Ismael acorda, encontra na mesa um volumoso maço de notas e um papel com uma caligrafia apressada 

“Não vás à Polícia. Se fores, matamos-te. Sabemos como fazê-lo. Se a combinação não for certa, também te matamos. (…) O dinheiro é para desapareceres. è o teu pagamento (...) Se a coisa não correr bem, matamos-te. Se tudo correr bem, mas ainda estiveres aqui depois das sete, matamos-te.” (p.112)

Ismael desespera-se e tenta fugir, até perceber que todas as portas estão fechadas. Depois de muita aflição, percebe que um homem entra na casa, de chapéu, óculos escuros, e, mais importante, armado. O homem pede a Ismael que se vire de costas, uma vez que a combinação estava errada. Vão ali discutindo um pouco, sobre como Ismael tem a certeza de ter percebido bem a mensagem. In girum imus nocte…. In girum imus nocte! Até que, eureca! Qual Robert Langdon, Ismael afirma: É um palíndromo!
É assim que Ismael explica ao seu algoz que In girum imus nocte, lido de trás para a frente fica et consumimur igni. Tudo junto dará “In girum imus nocte et consumimur igni” – Andamos às voltas na noite e somos consumidos pelo fogo.
O assassino faz então uma chamada telefónica, sendo atendido por Marlene, passando-lhe a nova senha.
Percebem então que a nova senha funcionou e mandam Ismael desaparecer.

O final brilhante

E ele desaparece. Na falta de ter a quem recorrer, dirige-se à retrosaria onde trabalha Leo, ficando a saber, através da sua patroa, que quando Ismael foi dado como morto, após o acidente, Leo enlouqueceu, estando agora institucionalizada.

Ismael resolve visita-la, mas ela não rege à sua presença, estando completamente catatónica.
Sem saber o que fazer, Ismael deixa o maço de notas que “recebeu” de pagamento como depósito na instituição, em nome de Leo, para que esta possa ser cuidada.
Ismael resolve então instalar-se numa pensão, até ao dia seguinte, contudo, os seus planos são interrompidos por uma bala que o atravessa, ao engano, vinda da arma de um caçador de javalis.

Considerações finais

A sinopse inicial do livro prometia algo bem interessante. A procura pela memória perdida acaba sempre por suscitar curiosidade… para tentar percebermos o que terá acontecido no acidente, quem era Tomeu…

Contudo, conforme a leitura se desenrola, vamos percebendo que existem uma série de pontas soltas, que não vão dar a lado nenhum...

Qual o objetivo de expor uma infância tão complicada, tão pesada, quando isso, ao longo da narrativa, não se traduz em nada no desenvolvimento do personagem?

Para quê a aproximação com Leo? A única finalidade dela é, no final da história, ele aparentemente ter para onde voltar. Mais nada. Mas ela enlouquece. 

Houve um acidente e, aparentemente, os cúmplices de Tomeu conseguiram “resgatar” Ismael antes da polícia. Pouco crível. E a história dá a entender que Tomeu ficou desfigurado, deixaram os documentos de Ismael junto do corpo daí terem dado Ismael como morto. Está bem...

Como tinham já uma estrutura tipo hospital montada e, quando Ismael foge depara-se precisamente com mais um envolvido no crime? Ou Marlene procurou a Drª Bovary e contou-lhe que tinha o seu refém?

♡Porque é que no inicio nos são apresentados Àlex e Simó se o autor se esquece que eles existem e nunca mais lhes volta a pegar ao longo da narrativa?

Fiquei com uma série de questões no final desta leitura...

Além disso, as cenas finais, envolvendo o palíndromo tornam a saída ainda mais rebuscada, lembrando um arremedo de Dan Brown, executado às pressas.

Toda esta narrativa é intercalada com sonhos de Ismael, fantasias, e a história de uma família de javalis que morre num acidente de carro (o mesmo do qual Ismael foi vítima) e cujo único sobrevivente, um pequeno javali, é o estopim para, no final atrair o caçador até junto de Ismael. 
Dá a entender que se quis completar o ciclo perfeito, mas a verdade é que se trata de uma narrativa caótica, confusa, superficial e muito pouco credível.

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