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sábado, 28 de setembro de 2024

#024 | O Tigre, de Joël Dicker

Autor: Joël Dicker (Suíça)
Título Original: Le Tigre (2005)
Editora: Alfaguara
Edição: 1ª Edição, Outubro 2021 (59 págs.)
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Este conto assume-se como o primeiro trabalho de Joël Dicker, escrito aos dezanove anos e enviado para um concurso literário. Acontece que o manuscrito nem sequer foi considerado para concurso, sendo que o júri viria a confessar ter duvidado que alguém tão jovem pudesse ser o autor daquele texto.
Este já é um ponto de partida interessante para indicar a qualidade do texto e da escrita.


Logo no início do primeiro paragrafo, somos situados no tempo e no espaço da ação, o que prende de imediato a nossa atenção, “A notícia correra a capital, São Petersburgo, como um rastilho. Naquele tórrido mês de Agosto de 1903, não se falava de outra coisa”.
A razão de tanta agitação é a notícia de que, na longínqua Sibéria, uma aldeia é atacada por um tigre colossal, espalhando um rastro de terror, morte e destruição.

Perante o êxodo da população, o receio da perda de investimento no local e a dificuldade em encontrar caçadores dispostos a enfrentar o animal, o Czar anuncia uma recompensa magnífica para quem seja capaz de vencer a fera: o peso do animal em moedas de outro.

O chamado do Czar surte efeito e, “vindos dos quatro cantos do país, sozinhos ou em grupos organizados” vários homens se lançam na empreitada de encontrar e capturar o dito tigre.


Um deles é Iván Levovitch, um jovem humilde, inexperiente, vindo de uma modesta família de marceneiros que, sem medo, aceita o desafio que lhe permitirá alcançar o seu grande sonho de ser rico e famoso.

Devido à sua parca condição financeira, para realizar esta jornada Ivan apenas pode munir-se de uma espingarda e um cavalo e, ao aperceber-se da vastidão da Sibéria, logo se arrepende de não se ter juntado a um grupo de caçadores mais bem organizado. Contudo logo nos é dito o motivo que o impeliu a partir sozinho: “Não queria dividir a recompensa”.

Este pensamento ganancioso, bem como a desconfiança para com os outros vai sempre acompanhando Ivan na sua procura pelo Tigre, tornando a sua jornada mais difícil e solitária. “Poderia aquele homem ajuda-lo ou, pelo contrário, teria sido industriado por caçadores pouco escrupulosos para desorientar os novos perseguidores com indicações falsas?”

Conforme se vai embrenhando na Sibéria, Ivan percebe que o rastro de destruição do Tigre é longo e que leva algum atraso em relação a outros grupos de caçadores. Contudo, conforme o tempo vai passando, os relatos sobre ataques vão diminuindo, Ivan começa a cruzar-se com outros caçadores (todos bem mais experientes e mais bem armados do que ele), xomeçando a espalhar-se o boato de que o Tigre já teria sido entregue ao Czar.

Após um período de três meses sem nenhum novo relato, sabe-se que o tigre voltou a atacar uma aldeia, sendo afugentado por um viajante. Quando questionado por Ivan, este é informado que “Este animal cheira o medo. Só ataca quem o teme…”


Ivan resolve então traçar um plano e, convencendo um grupo de camponeses a servir de “isco”, armar uma emboscada ao Tigre.
Neste ponto, percebemos que o papel de predador e presa se misturam e, para Ivan, a força motriz da sua demanda continua a ser a ambição, levando-o a um ato completamente egoísta e mesquinho.

O final acaba por não ser completamente previsível, sendo ainda assim justo e compatível com a história.

A narrativa progride linearmente, sem saltos cronológicos, num ritmo e num ambiente que, talvez por se passar na Sibéria, lembra um conto tradicional russo. O texto é acompanhado de belíssimas ilustrações, de David de las Heras, que complementam o texto e às quais vale a pena prestar atenção.

sábado, 21 de setembro de 2024

#023 | Serotonina, de Michel Houellebecq

Autor: Michel Houellebecq (França)
Título Original: Sérotonine (2019)
Editora: Alfaguara Portugal
Edição: 1ª Edição, Maio 2019 (280 págs.)
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Já havia lido, deste autor, lá por finais de 2016, o livro “Submissão”.
Quando tive que reiniciar a toma de um fármaco inibidor seletivo de recaptação de serotonina, lembrei-me que tinha este título estacionado na estante.

Sinopse

Este livro conta-nos a história de Florent-Claude Labrouste, um homem de quarenta e seis anos, funcionário do Ministério da Agricultura que detesta o seu nome. 
Confrontado com o diagnóstico de depressão, Florent-Claude inicia a toma de um antidepressivo – o Captorix – contando-nos, logo nas primeiras páginas que “os efeitos secundários indesejáveis mais frequentemente observados do Captorix são as náuseas, a diminuição da líbido e a impotência” e que “Nunca tinha tido náuseas.


A história começa, contudo, num momento anterior, em que Florent-Claude divide o apartamento com Yuzu, a namorada japonesa, muitos anos mais jovem, curadora da Casa da Cultura do Japão, percebendo-se rapidamente que a relação esmoreceu e que já não existe qualquer sentimento entre ambos.

Numa noite, igual a tantas outras, Florent-Claude vai fazendo zapping na televisão, deparando-se, a dada altura, com o programa “Voluntariamente Desaparecidos”, onde se contam diversos casos de pessoas que decidiram desaparecer para sempre, rumo ao anonimato.
Entretanto, a descoberta de uns vídeos comprometedores da namorada, que ele planeava já há muito abandonar, funciona como gatilho que o leva a despedir-se de si mesmo. Atendendo à sua existência miserável e inspirado no programa de televisão referido, Florent-Claude resolve desaparecer: Deixa o emprego, a namorada, sai de casa, e aluga um quarto de hotel, tentando permanecer o mais anónimo e discreto possível. Dedica os dias a divagar e deambular pelos bares, restaurantes e lojas da cidade, numa rotina perfeitamente homogénea e desprovida de emoção, tornando-se cada vez mais apático ao que o rodeia e cada vez mais depressivo.

Quando, em visita a um médico (que consultara apenas uma vez, mas que lhe parece de confiança) lhe é prescrito Captorix, vamos percebendo como este fármaco lhe devolve a possibilidade de aguentar o dia-a-dia, mas lhe rouba todo o tesão e a libido, que poucos homens estariam dispostos a perder.

É neste estado mental que a história de Florent-Claude nos vai sendo contada, alternando entre momentos presentes e rememorações do passado, recordando-se do seu tempo de juventude, dos amigos de faculdade, do suicídio dos pais e, principalmente, das relações amorosas vividas.
A passagem do tempo parece por vezes demarcada pela relação do momento, existindo sempre uma tónica maior no lado sexual do que no lado romântico da mesma (um grande exemplo disso, é o facto do autor nunca recorrer ao eufemismo “fazer amor” e falar sempre em “foder”. Mas, para quem já leu Laferrière, isto é para meninos, certo?)

Percebemos, contudo, que uma relação em particular marcou a vida de Florent-Claude, tornando-se, na fase presente da sua vida, quase uma obsessão reviver um vislumbre desse “amor”.

A minha experiência de leitura

Gosto particularmente de livros sobre depressão e deprimidos. Vivo a depressão, de forma intermitente, no meu dia-a-dia e sinto que é difícil por em palavras aquilo que se sente. Ou melhor, deixa de se sentir.

Apesar de ter encontrado passagens nas quais identifiquei as marcas da depressão, este livro traz, para mim, uma perspetiva e um pano de fundo diferentes. Primeiramente por se tratar de uma perspetiva masculina e, em segundo lugar, por apesar de relatar uma vivência na primeira pessoa, se perceber que o problema de depressão não é necessariamente de índole individual, mas sim social, quer pela fragilidade dos laços, quer pela impotência perante as pressões do capitalismo (sim, no meio disto Houellebecq consegue fazer uma crítica aos problemas que a UE causou aos agricultores da França, com a sua intransigência em matéria de quotas leiteiras, assentes numa ideologia de  comércio livre).

“Seria eu capaz de ser feliz na solidão? Não acreditava nisso. Seria capaz de ser feliz no geral? É o tipo de pergunta que, creio, devem evitar fazer-se” (pág. 73)

Dizer que este é livro sobre um homem deprimido que sempre valorizou o sexo e que, neste momento, se encontra impotente, seria redutor. Contudo, em muitos momentos, lemos sobre as suas relações quase como uma ode ao seu próprio pénis. Aos momentos gloriosos por ele vividos. 
As descrições de sexo são bastante gráficas, frequentemente misóginas, embora procurem retratar o estado de decadência em que se encontram as relações.
Não obstante, houve dois momentos em que achei o grafismo excessivo e desnecessário (uma envolvendo animais e outra a indiferença do personagem perante a identificação de um pedófilo).

Não obstante, não podemos tirar ao autor o mérito de abordar fria e diretamente questões tabu (como a zoofilia, a pedofilia, e mesmo o homicídio de uma criança), apresentando-nos um retrato da tristeza, da solidão, assim como da estranha volúpia que há no desejo de auto-extinção. 


sábado, 14 de setembro de 2024

#022 | Nas Suas Mãos: A incrível vida de Suzanne Noël, de Leïla Slimani

Autor: Leïla Slimani (Franco-Marroquina)
Ilustrações: Clément Oubrerie (França)
Título Original: A Mains nues (2022)
Editora: Iguana
Edição: 1ª Edição, Maio 2024 (208 págs.)
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Esta Graphic Novel conta a história de Suzanne Nöel – uma brilhante estudante de Medicina, pioneira na área da cirurgia estética e reconstrutiva.

Nascida numa família abastada, Suzanne casa-se aos 19 anos com Henri Pertat, um médico nove anos mais velho do que ela, que desde logo a incentiva a estudar também medicina, para que, na sua clínica, possam trabalhar juntos.


Em 1905, Suzanne começou a ter aulas de medicina sendo aprovada, em 1912, no "Internat des Hospitaux de Paris" logo após o nascimento da filha  Jacqueline. Suzanne foi a quarta de sessenta e sete alunos a passar neste exame o que demonstra a sua grande vocação e dedicação.

Logo nesse ano, Suzanne começa a desenvolver o seu interesse pela cirurgia estética quando percebe que a atriz francesa Sara Bernhardt, na altura com mais de sessenta anos, regressa de uma viagem parecendo bastante rejuvenescida. Suzanne começa assim a experimentar beliscar a pele para ver se conseguia adquirir o mesmo efeito, encetando, mais tarde, uma série experiências em coelhos anestesiados.

Durante os seus estudos, e enquanto estagiária o Serviço de Dermatologia no Hôpital Saint-Louis, conhece André Noёl, com quem se começa a envolver.
Começamos a perceber, neste momento, que Suzanne se dedica quase em exclusivo à medicina e aos estudos, deixando a vida familiar e a maternidade em segundo plano.

Já licenciada é colocada no serviço do professor Hippolyte Morestin, um cirurgião com enorme reputação internacional, e um dos primeiros a praticar exclusivamente Cirurgia Plástica e Reconstrutiva.

Entretanto tem início a Primeira Guerra Mundial que, além de ceifar a vida de um milhão e meio de pessoas, desfigurou e mutilou centenas de milhares de soldados. Alguns destes mutilados usavam mascaras ou próteses, enquanto outros apresentavam faces grotescas devido às lesões.

Durante a guerra, tal como todos os médicos estagiários, Suzanne foi autorizada a praticar Medicina sem ainda ter concluído a sua tese final. Assim, junta-se à equipe do professor Morestin, no Hôpital Militaire Val-de-Grâce, colaborando em reconstruções faciais de soldados feridos, tratando centenas de homens.

Nessa altura, o marido – Henri Pertat – apesar de dispensado das obrigações militares, solicitou a colocação na frente de combate, participando, em 1915, em testes com dispositivos que visavam evitar os efeitos nocivos dos gases asfixiantes, entretanto introduzidos como arma letal. Contudo, acidentalmente, inalou gás, o que lhe desencadeou uma grave e progressiva insuficiência respiratória, tendo falecido no final de 1918, aos 49 anos de idade.

Em 1920, Suzanne volta a casar – com André Noël, o colega com quem já se envolvia desde a faculdade – assumindo o seu nome, pelo qual ficou conhecida.
Como a maioria dos hospitais não queria ter um médico especializado apenas em cirurgia estética, ela decidiu montar uma clínica em sua casa, limitando inicialmente, a sua prática a pequenas cirurgias, como lifting facial e correções das pálpebras. Ficou famosa pela sua Petit Operation, que consiste numa técnica ainda hoje utilizada, na qual fazia pequenas incisões invisíveis ao longo da linha do cabelo, antes de suturar pele apenas o suficiente para fabricar tensão sem extirpar qualquer tecido subjacente.

Suzanne constrói uma vida feliz com André, contudo, pouco tempo depois – em 1922 – a tragédia volta à sua vida, quando perde tragicamente, com a gripe espanhola, a filha Jacqueline, na altura com 13 anos.

Importa aqui referir que a Graphic Novel deixa sempre em aberto a possibilidade de Jacqueline – a filha de Suzanne – poder ser filha de André (e não de Henri), uma vez que os dois já se envolviam previamente à gravidez de Suzanne. Embora, em pesquisas posteriores, não tenha encontrado referências a esse romance prévio ao falecimento de Henri, é importante lembrar que se trata de uma biografia romanceada e, apesar dos feitos médicos de Suzanne serem bem documentados, o mesmo não se passa em relação à sua vida pessoal.

Assim, posteriormente à morte de Jacqueline, o marido, André Noël, entra em profunda depressão, começa a beber e não concebe que Suzanne consiga continuar a dedicar-se à medicina. Desta forma, a 5 agosto de 1924, na sua presença, André estaciona o carro na Pont-au-Change e precipita-se do parapeito da ponte para o rio Sena, morrendo afogado. 


O escândalo motivado por este trágico acontecimento foi considerável, particularmente no meio médico, razão pela qual em 1925, ao submeter finalmente a sua tese, com 47 anos, Suzanne Noël não a assinou com o seu nome clínico, tendo antes optado pelo nome de solteira. Além disso, Suzanne opta por um tema em nada ligado à cirurgia plástica, defendendo um trabalho sobre a extensão reflexa do hallux.

Sobrevivendo aos dramas familiares, Suzanne tenta recompor-se, dedicando-se intensamente à prática da Cirurgia Plástica: efetua face liftings, remodela narizes e mentos, realiza revisões de cicatrizes e reconstruções da face com enxertos dérmicos, ampliando as potencialidades e o âmbito desta nova especialidade a outras situações e regiões anatómicas, 
Ao remodelar seios, coxas e nádegas, Suzanne contribuiu decisivamente para a expansão desta especialidade cirúrgica, juntando-lhe uma nova diferenciação: a Cirurgia Estética. Estabeleceu assim princípios técnicos fundamentais, ainda atualmente utilizados, inovou praticando novas técnicas como, por exemplo, a remoção de gordura por aspiração (a lipoaspiração, hoje amplamente divulgada e praticada), além de inventar ou melhorar muitos dos instrumentos cirúrgicos que utilizava.

A par da cirurgia, interessou-se sempre pelas repercussões psicológicas das mesmas, analisando ao pormenor as reações nas doentes.

Feminista convicta, Suzanne vai percebendo que a cirurgia plástica poderia constituir um instrumento valioso e útil para a emancipação da mulher permitindo corrigir não apenas sinais de envelhecimento e de doença, mas também os resultantes de condições de vida difíceis e precárias. 
A Cirurgia Estética era encarada por Suzanne Noël como uma alavanca para a emancipação social, particularmente feminina, acreditando que o aspeto resultante do rejuvenescimento facial ajudaria as mulheres a encontrar mais facilmente trabalho. Assim, apesar de muitas das suas pacientes serem oriundas dos bairros elegantes e ricos de Paris, Suzanne tratava igualmente, com gosto e empenho, pessoas humildes, muitas vezes gratuitamente, de acordo com as suas convicções filantrópicas e progressistas.

No ano de 1926 publica La Chirurgie Esthétique et son rôle sociale, que foi amplamente lido e difundido, sendo mais tarde editado na Alemanha como forma de divulgar e explicar a importância da sua atividade, numa época em que submeter-se ou mesmo praticar Cirurgia Estética não só não era bem aceite, como era até estigmatizado.

Suzanne Noël enfrentou não só os preconceitos do seu tempo, como lutou incessantemente pelo direito de voto das mulheres, pela sua independência e pelo reconhecimento do seu trabalho como cirurgiã plástica, tornando-se uma celebridade no seu país e no mundo inteiro.
Expressando-se de forma eloquente, participou em inúmeras conferências sobre a Cirurgia Plástica e Estética, sempre com grandes audiências, aproveitando habitualmente a oportunidade para falar sobre a autodeterminação feminina e os direitos das mulheres.


Até ter esta Graphic Novel nas minhas mãos, não sabia nada sobre esta mulher. Nada. Daí, após a leitura, ter sentido necessidade de procurar mais informações sobre os trabalhos de Noël. Dá para perceber isso quando, neste comentário, resumo bem mais a sua biografia do que falo da Graphic Novel propriamente dita, certo?
Bem, a graphic novel, mesmo romanceando a vida pessoal de Noël, aborda bem os pontos fulcrais da sua carreira quer na medicina, quer – um aspeto que não abordei – na sua promoção do Soroptimismo, um movimento para mulheres profissionais. Ficamos assim a perceber a relevância que esta mulher teve no empoderamento de outras mulheres e na forma como o seu trabalho médico reverbera até aos dias de hoje.

Graficamente, os tons das imagens acompanham o conteúdo, tornando-se mais escuros e azulados nos momentos mais pesados da história e mais alarajados nos momentos de estudo e entusiasmo de Suzanne. Apesar dos traços não serem “limpos” tornam-se agradáveis.

sábado, 7 de setembro de 2024

#021 | Morfina, de Mikhail Bulgakov

Autor: Mikhail Bulgakov (Rússia)
Título Original: Морфий (1926)
Editora: 7 Nós
Edição: 1ª Edição, Maio 2010 (64 págs.)
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Morfina começa contando-nos a história de Dr. Bomgard, um jovem médico que, no ano de 1917 é transferido para um hospital menor, de uma capital de província, a fim de cuidar da população local. 
No Inverno de 1918 recebe uma carta de um camarada de faculdade – o Dr. Poliakov – informando-o que está a sofrer de uma “grave, sórdida doença” e pedindo-lhe que o visite “o mais depressa possível”.

Bomgard, preocupado com o colega e amigo, prontamente inicia todos os tramites necessários para, no dia seguinte ir ao encontro de Poliakov.
Contudo, ao amanhecer, Bomgard é acordado pela enfermeira, que o informa que “o médico do distrito de Gorielovo (…) deu um tiro de revolver em si mesmo”.

Poliakov fora levado por Maria Vlassievna – uma enfermeira com quem trabalhava – encontrando-se anda vivo quando chegaram ao cuidado de Bomgard. Entregando-lhe um manuscrito, Poliakov sussurrou “O caderno é para si…” antes de mergulhar na eterna obscuridade.

É do conteúdo desse caderno que tratam as páginas seguintes, assumindo-se o mesmo como uma espécie de diário, mesmo que com várias páginas arrancadas.

Ficamos aí a saber que, por uma forte dor abdominal, no decorrer do seu trabalho, Poliakov recebeu, da enfermeira Anna Kirillovna, uma injeção de morfina. Na noite seguinte, Poliakov volta a sentir “uma sombra da dor da véspera” e, preventivamente, auto administra mais uma dose de morfina. “Felizmente que Anna Kirillovna tinha deixado o frasco.”

Percebemos então que, rapidamente Poliakov deixa de usar a morfina para amenizar a dor física, percebendo que esta também lhe amenizava os problemas pessoais e renova sua capacidade de trabalho. Da primeira injeção ao completo vício, vamos acompanhando como os "cristais brancos" lhe devolvem a beatitude que o fazem afastar-se temporariamente das angústias. 

Porém, é também rapidamente perceptível que a necessidade de morfina se torna cada vez mais premente, em doses maiores e intervalos mais curtos, levando Poliakov a comportamentos irresponsáveis, pouco éticos, e perigosos.

“Estado melancólico.
Não, eu sofro desta horrível doença, previno os médicos afim de que sejam mais caridosos com os seus pacientes. Não é um “estado melancólico”, mas uma morte lenta que se apodera do morfinómano se o privam, uma ou duas horas que sejam, de morfina” (pág. 42).

Na presente edição, temos, a partir da página 63 um resumo da “Vida de Mikhail Bulgakov” onde é fácil traçar um paralelismo entre a vida do autor e da personagem Poliakov.
Desta forma, percebemos que Morfina é também uma história autobiográfica uma vez que o próprio Bulgákov, também médico, e a exercer num lugarejo rural, foi viciado em morfina em sua juventude. A sua primeira esposa, Tatiana Lappa, foi de extrema importância para ajudá-lo a superar a dependência, sendo considerada uma inspiração para a personagem Anna, em Morfina.