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sexta-feira, 18 de outubro de 2024

#026 | Consumidos pelo fogo, de Jaume Cabré

Autor: Jaume Cabré (Catalunha / Espanha)
Título Original: Consumits pel foc (2021)
Editora: Tinta da China
Edição: 1ª Edição, Setembro 2022 (134 págs.)
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Recebi este livro através de um Clube de assinatura da Tinta da China e foi o meu primeiro contacto com a escrita de Jaume Cabré.

Neste livro é-nos contada a história de Ismael (ou o homem a quem, na maior parte do tempo, devemos chamar Ismael).

Sinopse

Ismael teve uma infância difícil com um pai abusivo que o culpa pela morte da mãe: Ismael nasceu no dia mais frio do ano e, apesar da mãe ter falecido nove anos depois, o pai culpa-o desse acontecimento “…foi depois de tu nasceres que ela ficou tão fraquinha que acabou mesmo por morrer. Fica a saber que a culpa foi tua.”
Os dois têm uma relação difícil e a situação fica pior um dia em que Ismael visita o pai, na gasolineira onde trabalha e este, sem motivo aparente, lança um jato de gasolina ao filho. A partir desse momento o pai de Ismael é internado numa instituição psiquiátrica e Ismael passa a viver com um monitor – Àlex – e mais quatro companheiros de residência.
É neste ambiente em que Ismael cresce e se desenvolve, sendo estimulado e incentivado por Simó, um dos seus companheiros de quarto, a desenvolver o hábito da leitura.

Superando todos estes obstáculos, Ismael consegue estudar, revela-se bom aluno e acaba por se tornar se professor de línguas e literatura, culminando a sua vida adulta numa existência rotineira e pacata.

A sua vida parece mudar no dia em que lhe cai um botão da camisa e, numa retrosaria, reencontra uma antiga vizinha, amiga de infância – a Leo – aproximando-se dela e conhecendo, pouco a pouco, a felicidade.

O ponto de virada acontece num dia em que, num momento tão rotineiro como ir comprar pão, Ismael é interpelado por um antigo aluno – Tomeu – que refere dirigir-se a um simpósio de poliglotas. Prometendo apresenta-lo à Presidente, e garantindo que a participação nestes simpósios costuma render bastante dinheiro, Ismael aceita boleia de um antigo aluno. 

Depois disto, Ismael acorda confuso e atordoado num hospital, sem memória do que lhe aconteceu… e sem memória do seu próprio nome.


Com spoilers

Ismael está num hospital, a ser cuidado por uma médica e um enfermeiro que, frequentemente lhe lembram que ele bateu com a cabeça, precisa descansar, mas, aos poucos, vão tentando que ele se lembre de mais informações sobre si.

Ismael vai se recordando de nomes de personagens de livros, começando a tratar a médica por Drª Bovary, e, muito lentamente, começa a ter vislumbres do acidente com o antigo aluno, algo que omite dos seus cuidadores.
Os vislumbres são fragmentados, pouco coerentes e Ismael começa a ter receio de estar envolvido em algo mais do que um simples acidente. Teriam matado alguém? Além disso, o facto de não haver rasto de Tomeu, nem da documentação de ambos, também lhe começa a levantar suspeitas.

Uma noite, em que se sente com um pouco mais de forças, Ismael resolve levantar-se para ir ao WC sozinho. Contudo, ao sair do quarto, e avançando pelo corredor do hospital, descobre que este se trata, na verdade, de um armazém. Quem são então a médica e o enfermeiro que estão a cuidar dele? Como foi ele parar ali?
Descalço, com uma bata hospitalar e com um soro na mão, Ismael resolve fugir.
Percebe que está numa zona industrial, mas não se consegue localizar, até que encontra uma espécie de bar, anunciado com uma palmeira e uma figura humana em néon, que vai piscando numa intensa luz cor-de-rosa.
Quando se está a aproximar da porta, sai de lá uma mulher alta e aprumada que quase tropeça em Ismael.
A mulher tinha acabado de ser despedida, está furiosa, mas, depois de ouvir a história de Ismael e de muito hesitar, numa atitude de “que se lixe” resolve ajuda-lo e leva-lo para sua casa.

Vamos então acompanhando Ismael e Marlene na busca de pistas com base nas  poucas memórias que Ismael vai trazendo. Ficamos a conhecer um pouco mais sobre Marlene também, sabendo que ela canta e fala alemão – o que lembra a Ismael que ele também sabe línguas. Agindo como uma psicóloga, esta vai lhe fazendo perguntas e anotando possíveis pistas sobre quem é e o que aconteceu a Ismael.

A reviravolta

Uma noite, depois de realizarem um assalto (uma vez que Marlene estava desempregada e Ismael não possui qualquer dinheiro), Ismael começa a sentir-se angustiado e, de um folego, conta a Marlene tudo aquilo de que se lembra.

Tomeu avança em direção a um casarão e avisa Ismael que este terá que se lembrar bem do que a senhora disser. Confuso, Ismael questiona pelos poliglotas até que se apercebe que Tomeu está a agredir a idosa senhora, dona da casa, questionando pela palavra pass do Banque Trois. A idosa nega conhecer qualquer palavra pass e está cada vez mais assustada.
Ismael assiste a tudo aterrorizado, até que a senhora recita uma frase, que a Tomeu soa a uma série de números em francês. 
Tomeu aplica um golpe fatal na senhora e ambos fogem dali a alta velocidade 

“Desopilemos daqui. Explico-te no carro” (p. 103).

Ismael está furioso, aterrorizado e ameaça ir à polícia. Entretanto os dois começam a discutir, a viatura segue a uma crescente velocidade, até que se dá o acidente.

“In girum imus nocte.
- O quê?
- Foi o que disse a senhora (…)” (p.107)

Após concluir a história, Marlene questiona Ismael sobre o sentido daquelas palavras, confirma com ele que não representam números nenhuns e, por já estarem cansados, ambos combinam ir descansar e explorar melhor a questão no dia seguinte.
Quando Ismael acorda, encontra na mesa um volumoso maço de notas e um papel com uma caligrafia apressada 

“Não vás à Polícia. Se fores, matamos-te. Sabemos como fazê-lo. Se a combinação não for certa, também te matamos. (…) O dinheiro é para desapareceres. è o teu pagamento (...) Se a coisa não correr bem, matamos-te. Se tudo correr bem, mas ainda estiveres aqui depois das sete, matamos-te.” (p.112)

Ismael desespera-se e tenta fugir, até perceber que todas as portas estão fechadas. Depois de muita aflição, percebe que um homem entra na casa, de chapéu, óculos escuros, e, mais importante, armado. O homem pede a Ismael que se vire de costas, uma vez que a combinação estava errada. Vão ali discutindo um pouco, sobre como Ismael tem a certeza de ter percebido bem a mensagem. In girum imus nocte…. In girum imus nocte! Até que, eureca! Qual Robert Langdon, Ismael afirma: É um palíndromo!
É assim que Ismael explica ao seu algoz que In girum imus nocte, lido de trás para a frente fica et consumimur igni. Tudo junto dará “In girum imus nocte et consumimur igni” – Andamos às voltas na noite e somos consumidos pelo fogo.
O assassino faz então uma chamada telefónica, sendo atendido por Marlene, passando-lhe a nova senha.
Percebem então que a nova senha funcionou e mandam Ismael desaparecer.

O final brilhante

E ele desaparece. Na falta de ter a quem recorrer, dirige-se à retrosaria onde trabalha Leo, ficando a saber, através da sua patroa, que quando Ismael foi dado como morto, após o acidente, Leo enlouqueceu, estando agora institucionalizada.

Ismael resolve visita-la, mas ela não rege à sua presença, estando completamente catatónica.
Sem saber o que fazer, Ismael deixa o maço de notas que “recebeu” de pagamento como depósito na instituição, em nome de Leo, para que esta possa ser cuidada.
Ismael resolve então instalar-se numa pensão, até ao dia seguinte, contudo, os seus planos são interrompidos por uma bala que o atravessa, ao engano, vinda da arma de um caçador de javalis.

Considerações finais

A sinopse inicial do livro prometia algo bem interessante. A procura pela memória perdida acaba sempre por suscitar curiosidade… para tentar percebermos o que terá acontecido no acidente, quem era Tomeu…

Contudo, conforme a leitura se desenrola, vamos percebendo que existem uma série de pontas soltas, que não vão dar a lado nenhum...

Qual o objetivo de expor uma infância tão complicada, tão pesada, quando isso, ao longo da narrativa, não se traduz em nada no desenvolvimento do personagem?

Para quê a aproximação com Leo? A única finalidade dela é, no final da história, ele aparentemente ter para onde voltar. Mais nada. Mas ela enlouquece. 

Houve um acidente e, aparentemente, os cúmplices de Tomeu conseguiram “resgatar” Ismael antes da polícia. Pouco crível. E a história dá a entender que Tomeu ficou desfigurado, deixaram os documentos de Ismael junto do corpo daí terem dado Ismael como morto. Está bem...

Como tinham já uma estrutura tipo hospital montada e, quando Ismael foge depara-se precisamente com mais um envolvido no crime? Ou Marlene procurou a Drª Bovary e contou-lhe que tinha o seu refém?

♡Porque é que no inicio nos são apresentados Àlex e Simó se o autor se esquece que eles existem e nunca mais lhes volta a pegar ao longo da narrativa?

Fiquei com uma série de questões no final desta leitura...

Além disso, as cenas finais, envolvendo o palíndromo tornam a saída ainda mais rebuscada, lembrando um arremedo de Dan Brown, executado às pressas.

Toda esta narrativa é intercalada com sonhos de Ismael, fantasias, e a história de uma família de javalis que morre num acidente de carro (o mesmo do qual Ismael foi vítima) e cujo único sobrevivente, um pequeno javali, é o estopim para, no final atrair o caçador até junto de Ismael. 
Dá a entender que se quis completar o ciclo perfeito, mas a verdade é que se trata de uma narrativa caótica, confusa, superficial e muito pouco credível.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

#025 | O Clube dos Suicidas, de Robert Louis Stevenson

Autor: Robert Louis Stevenson (Escócia)
Título Original: The Suicide Club (1878)
Editora: Book Cover
Edição: 1ª Edição, Janeiro 2021 (87 págs.)
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Este livro apresenta-nos 3 pequenas narrativas, publicadas pela primeira vez na The London Magazine, em 1878, que se entrecruzam contando-nos as vivências do príncipe Florizel e do seu fiel confidente – o Coronel Geraldine.
As três narrativas, agrupadas sob o nome O Clube dos Suicidas foram posteriormente publicadas, em 1882 na coletânea de contos do autor – As novas mil e uma noites.

Confesso que este título inicialmente me remeteu mais para uma história de terror psicológico, mas, bem vistas as coisas, acaba por ter mais contornos de um policial.


♡ Detalhado e com spoilers 

1ª Narrativa: A História do Rapaz dos Pasteis de Nata

Nesta primeira narrativa somos apresentados ao Príncipe Florizel – Príncipe da Boémia – e ao seu Estribeiro-Mor, o Coronel Geraldine. Logo de início percebemos que, aborrecido pelos seus afazeres oficiais, o Príncipe tem o costume de se disfarçar e, acompanhado de Geraldine, percorrer as ruas de Londres em busca de algum divertimento e aventura.
A narrativa começa então numa noite em que os dois se deparam com um jovem que percorre os bares a oferecer pastéis de nata. 
Após uns instantes de conversa, este partilha a sua intenção de cometer suicídio muito em breve, recorrendo ao Clube dos Suicidas. Para tentarem obter mais informações, o Florizel e o coronel alegam estar interessados em fazer o mesmo.
Ficam então a saber que o clube é para cavalheiros, das mais variadas condições sociais, que estão insatisfeitos com suas vidas, mas não tem a coragem necessária para levar a cabo as suas intenções. 

“Não consigo encostar uma pistola à cabeça e puxar o gatilho; algo mais forte que eu me impede de fazê-lo. E, embora odeia a vida, não tenho em mim a força suficiente para agarrar a morte e acabar com tudo” (p. 14)

A admissão no clube é concretizada através do pagamento de quarenta libras e o ritual concretiza-se através de um jogo de cartas, que ocorre todas as noites: Os membros do clube sentam-se à volta de uma mesa, enquanto as cartas são distribuídas, aleatoriamente. A morte aguarda o homem que recebe o Ás de Espadas, enquanto que, ao destinatário do Ás de Paus, cabe o papel de assassino.

“– Ele só precisava de quarenta libras – disse o rapaz em tom melancólico. – Sem elas não se pode entrar. O regulamento é intransigente: quarenta libras para cada um. Vida amaldiçoada, em que um homem sem dinheiro não pode sequer morrer!” (p. 12)

Neste primeiro serão, em que Florizel conhece o Clube dos Suicidas, fica a perceber que a maioria dos participantes são jovens, sendo os mais diversos os motivos que os levam a não mais querer viver. Convivem e conversam entre si até se iniciar o ritual, sendo todo o serão gerido pelo “Presidente”

“Há três anos que desempenha em Londres este ofício tão útil e, acho que posso acrescentar, artístico; jamais surgiu sequer uma sugestão de suspeita” (p. 25)

Acontece que, nessa primeira noite, o rapaz dos pasteis de nata recebe um Ás de Paus: a carta do assassino.
Florizel e Geraldine ficam verdadeiramente incomodados com esta situação, tomando Florizel, para si, a missão de acabar com o clube.

“– Geraldine, aquele infeliz ontem à noite era tão inocente quanto você ou eu – disse o Príncipe, erguendo o rosto. – E hoje ele tem na alma a culpa de uma morte. Quando penso no presidente, sinto um aperto no coração. Não sei como isso deve ser feito, mas, tão certo quanto há um Deus no céu, eu vou acabar com aquele bandido” (p. 31)

A partir desse momento, acabar com o Presidente torna-se o principal objetivo do Príncipe e, para isso, fica determinado que se realizará um duelo entre ele e o irmão de Geraldine, a seu pedido.

2ª Narrativa: A História do Medico e do Baú de Saratoga

Nesta segunda narrativa é-nos contada a história de Silas Q. Scuddamore, um jovem americano que se encontra a viver em Paris. Silas é descrito como imensamente rico, embora avarento, tímido, com pouca experiência e conhecimento de mundo e extremamente curiosos e bisbilhoteiro.
Tem como vizinha a Madame Zéphyrine, uma “figura atraente e de porte elegante”, mas que “não era pessoa de sangue nobre”. No mesmo andar vive também um médico inglês – o Dr. Noel – que “dedicava ao estudo grande parte do seu tempo”.
A ação inicia-se quando Silas recebe no seu quarto, pelas mãos da camareira, um bilhete, escrito numa caligrafia feminina, convidando-o a apresentar-se nessa mesma noite, às 23h, no Salão de Baile Bullier.
Prevalecendo a curiosidade sobre a timidez, Silas apresenta-se no Salão, percebendo que decorre um Baile de Carnaval.
De entre os convidados, Silas nota a presença de Madame Zéphyrine que conversa com um inglês. Aproxima-se e percebe que o inglês indica alguém a Madame Zéphyrine “É aquele homem (…). Ali, aquele louro de cabelos compridos. (…) Vá, mas cuidado com o Príncipe. Não consigo entender a maldita coincidência que o trouxe aqui nesta noite.
Para Silas, nascido numa república, a referência a um Príncipe aguça a sua já exacerbada curiosidade, arranjando forma de se aproximar deste e pondo-se à escuta.

“– Ouça o que lhe digo, Geraldine – pedia o primeiro –, isto é uma loucura. Você mesmo escolheu o seu irmão para esta perigosa missão, e tem o dever de vigiar a sua conduta. Ele concordou ficar uns dias em Paris, o que já foi uma imprudência, levando-se em conta do caráter do homem com quem ele está a lidar; mas agora, faltando menos de quarente e oito horas para o momento da decisão, pergunto-lhe: deveria ele estar a perder tempo aqui?” (p. 43)

Entretanto, Silas repara que Madame Zéphyrine abandona o salão com o rapaz louro e lembra-se do bilhete que recebeu.

“Daqui a dez minutos eu posso estar de braços dados com uma mulher tão bonita como esta, e até mais bem-vestida; talvez até uma condessa.” (p44)

Passados poucos minutos, uma senhora, mais velha aproxima-se de Silas e, envolta em mistério e galanteios fá-lo prometer que passaria todo o dia seguinte em casa, sem receber visitas, devendo sair da casa pelas 23h15, para se encontraram à esquina dos Jardins de Luxemburgo com o Boulevard. A mulher muito insiste para que ele não fale com ninguém, especialmente com o porteiro à saída do prédio.

Silas cumpre o combinado, ficando à espera da dama misteriosa por bastante tempo. Quando se dá por convencido que esta não aparecerá resolve voltar para casa. É então que, em pânico e apavorado, se apercebe que o cadáver do rapaz louro jaz na sua cama. Silas dá um grito e, quando se apercebe, já Dr. Noel entrou no seu quarto e se apercebeu do sucedido.
Encorajado pelo médico, Silas põe-no a par de todos os acontecimentos que o levaram àquela situação, omitindo apenas a conversa que escutara do Príncipe.

“– Coitado! – exclamou o Dr. Noel. – Ou está a mentir, ou então caiu inocentemente nas mãos mais perigosas da Europa. Pobre rapaz, que armadilha foi montada para a sua ingenuidade.” (p. 51)

Não tendo mais ninguém a quem recorrer, e com medo de ser injustamente acusado de assassinato, Silas aceita cumprir as ordens de Dr. Noel, que se compromete a ajuda-lo. Para isso, deve esvaziar um grande baú que possuía nos seus aposentos – o baú de Saratoga – e lá esconder o corpo.
No dia seguinte, Dr. Noel explica o plano restante.

“Amanhã de manhã, bem cedo o Principe Florizel da Boémia volta para Londres, depois de se divertir por alguns dias no Carnaval Parisiense. Tive a sorte de, há muito tempo, fazer ao Coronel Geraldine (…) um desses favores tão comuns na minha profissão, que nunca são esquecidos por qualquer uma das partes. (…) imaginei que a bagagem de uma pessoa tão importante, por uma questão de cortesia, passaria sem exame pelas autoridades alfandegárias. (…)
Amanhã, se for ao hotel antes das seis horas onde o Príncipe está hospedado, a sua bagagem será anexada à dele, e viajará como parte da comitiva.” (p. 54-55)

Noel entrega ainda a Silas um envelope grosso, e uma morada onde se deverá dirigir ao chegar a Londres.
Posteriormente, chegados a Londres, Silas conta ao Príncipe Florizel as suas desventuras.

“O senhor não é mais do que uma vítima, e, já que não devo puni-lo, pode ficar certo de que farei o possível para ajuda-lo. Agora, vamos ao assunto – continuou. – Abra o baú imediatamente, e deixe-me ver o que contém.” (p.63)

Para surpresa de todos, o cadáver do jovem louro tratava-se, nada mais nada menos, do que do irmão do Coronel Geraldine.

3ª Narrativa: A Aventura do Carro de duas Rodas

A terceira e última narrativa é a mais breve, e na qual se dá a conclusão da história.
A narrativa inicia acompanhando o tenente Brackenbury Rich que, após regressar das guerras da Índia, deambula sozinho pelas ruas de Londres num final de tarde. Quando começa a escurecer e também a chuviscar, Brackenbury apercebe-se que se aproxima, em boa hora, um cabriolé.

“– Para onde, senhor? – perguntou o cocheiro.
– Para onde quiser – respondeu Brackenbury.” (p. 68)


Para espanto de Brackenbury, o cocheiro parte imediatamente e, após algumas voltas pela cidade, para diante de um casarão iluminado, onde decorre uma festa.
Brackenbury percebe que se trata de um encontro de cavalheiros, trajados a rigor, todos “resgatados” por cabriolés espalhados pela cidade. 
O anfitrião é apresentado como Sr. Morris, um homem elegante, distinto e bastante amável, que terá organizado um serão de jogos.
Aos poucos, Brackenbury percebe que o Sr. Morris se vai despedindo de alguns dos “convidados”, referindo que estes foram levados até ali por engano, uma vez que existe um outro Sr. Morris a viver na mesma rua.
Quando restam apenas quatro convidados, finalmente é revelado o motivo de tão estranho serão.

“– Chegou a hora, cavalheiros, de explicar o meu propósito ao desvia-los do seu destino esta noite. Espero eu não tenham achado a noitada muito enfadonha; mas devo confessar que meu objetivo não era diverti-los, e sim conseguir ajuda na minha necessidade.” (p. 75)

Sr. Morris revela que a ajuda de que precisa exige sigilo absoluto, sendo uma empreitada de natureza perigosa e delicada. Após esta afirmação, e tendo a possibilidade de abandonar o serão sem represálias, dois cavalheiros acabam por se retirar, ficando apenas presentes Brackenbury e um velho major da cavalaria – o Major O’Rooke.
Sr. Morris explica então que se tratará de uma espécie de duelo “Um duelo com inimigos desconhecidos e perigosos; um duelo mortal” (p. 77)

Percebemos assim que o Sr. Morris é, na verdade, Geraldine, que se preparara para ir ao encontro do Príncipe, para finalmente realizar o duelo previamente marcado com o Presidente do Clube dos Suicidas, cativo de Florizel e de Dr. Noel.

“– Presidente, o senhor armou a sua última cilada, e foi sua própria vítima. O dia começa; esta será a sua última manhã. (…) O seu antigo cúmplice, Dr. Noel, em vez de me trair, entregou o senhor às minhas mãos, para que eu o julgue.” (p. 83).

“– Cavalheiros – continuou Florizel, retomando o seu tom normal de conversa –, este homem há muito foge de mim, mas agora, graças ao Dr. Noel, eu tenho-o nas mãos. Contar a história das suas maldades tomaria mais tempo do que dispomos agora; se o canal contivesse apenas o sangue de suas vítimas, este patife estaria tão molhado quanto o veem agora.” (p.84)

O duelo entre o Príncipe e o Presidente realiza-se então com as devidas formalidades, ficando o Major O’Rooke e o tenente Rich de juízes, enquanto o Dr. Noel e Geraldine aguardam numa sala.

Ao fim de uns minutos, Florizel e os oficiais regressam à sala, percebendo-se que o Presidente teve o seu devido fim.

Considerações finais

É inegável que a primeira narrativa desta pequena coleção é a que mais impressiona e mais marca o leitor. Devo referir que tive até alguma dificuldade, em alguns momentos, de me localizar e acompanhar as narrativas seguintes, apesar de tão breves. Isto porque, além de serem um pouco mais aborrecidas e pouco inspiradas, ambas foram contadas na perspectiva de personagens externas, que assistiram à ação sem a compreender, deixando muitas lacunas e muitos detalhes por explicar.  
Sei que o modo de publicação condiciona o desenvolvimento da narrativa, mas, uma história de mistério em que se tenta descobrir mais sobre o Clube dos Suicidas teria mais impacto do que uma história de vingança pessoal, entrecortada com detalhes que pouco relevam para a história principal. Isto é, acaba por ser interessante este "ligar dos pontos" mas talvez funcionasse melhor numa narrativa mais extensa, com mais tempo para explorar cada um dos arcos narrativos.

Acontece ainda que, muitas das cenas de ação decorrem fora da página o que, na tentativa de avivar o suspense, apenas anula o lado da aventura. Isto acontece, por exemplo, aquando do confronto final, em que Florizel e o Presidente do Clube se defrontam num duelo, no exterior, enquanto o narrador está sentado numa sala a pensar no que se passa. 

Um outro aspeto que me chamou a atenção foi o facto do presidente, por quem Florizel sente ódio imediato, ser consistentemente descrito como um vilão e assassino deplorável. No entanto, a única coisa que ele realmente faz, no início da história, é facilitar os desejos dos membros do seu clube, sendo que, todos no clube lá estavam por vontade própria e cientes das regras do mesmo. 
Pode parecer estranho defender um clube destes, mas, na narrativa, o clube já existia há três anos, funcionando apensas como mediador entre suicidas e sem nunca antes dar problemas. Não consegui, por isso, reunir os sentimentos de raiva ou antipatia pelo Presidente, nem perceber o porquê de tanto ódio por parte de Florizel. Na verdade, só depois de Florizel desmantelar o clube é que ficamos a saber que o Presidente tem um passado criminoso, sedno também após este evento que, pela decisão de marcar um duelo, se levou ao assassinato do irmão de Geraldine. Assim, em última instância, poder-se-ia considerar o próprio Florizel como responsável por esses crimes.

sábado, 28 de setembro de 2024

#024 | O Tigre, de Joël Dicker

Autor: Joël Dicker (Suíça)
Título Original: Le Tigre (2005)
Editora: Alfaguara
Edição: 1ª Edição, Outubro 2021 (59 págs.)
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Este conto assume-se como o primeiro trabalho de Joël Dicker, escrito aos dezanove anos e enviado para um concurso literário. Acontece que o manuscrito nem sequer foi considerado para concurso, sendo que o júri viria a confessar ter duvidado que alguém tão jovem pudesse ser o autor daquele texto.
Este já é um ponto de partida interessante para indicar a qualidade do texto e da escrita.


Logo no início do primeiro paragrafo, somos situados no tempo e no espaço da ação, o que prende de imediato a nossa atenção, “A notícia correra a capital, São Petersburgo, como um rastilho. Naquele tórrido mês de Agosto de 1903, não se falava de outra coisa”.
A razão de tanta agitação é a notícia de que, na longínqua Sibéria, uma aldeia é atacada por um tigre colossal, espalhando um rastro de terror, morte e destruição.

Perante o êxodo da população, o receio da perda de investimento no local e a dificuldade em encontrar caçadores dispostos a enfrentar o animal, o Czar anuncia uma recompensa magnífica para quem seja capaz de vencer a fera: o peso do animal em moedas de outro.

O chamado do Czar surte efeito e, “vindos dos quatro cantos do país, sozinhos ou em grupos organizados” vários homens se lançam na empreitada de encontrar e capturar o dito tigre.


Um deles é Iván Levovitch, um jovem humilde, inexperiente, vindo de uma modesta família de marceneiros que, sem medo, aceita o desafio que lhe permitirá alcançar o seu grande sonho de ser rico e famoso.

Devido à sua parca condição financeira, para realizar esta jornada Ivan apenas pode munir-se de uma espingarda e um cavalo e, ao aperceber-se da vastidão da Sibéria, logo se arrepende de não se ter juntado a um grupo de caçadores mais bem organizado. Contudo logo nos é dito o motivo que o impeliu a partir sozinho: “Não queria dividir a recompensa”.

Este pensamento ganancioso, bem como a desconfiança para com os outros vai sempre acompanhando Ivan na sua procura pelo Tigre, tornando a sua jornada mais difícil e solitária. “Poderia aquele homem ajuda-lo ou, pelo contrário, teria sido industriado por caçadores pouco escrupulosos para desorientar os novos perseguidores com indicações falsas?”

Conforme se vai embrenhando na Sibéria, Ivan percebe que o rastro de destruição do Tigre é longo e que leva algum atraso em relação a outros grupos de caçadores. Contudo, conforme o tempo vai passando, os relatos sobre ataques vão diminuindo, Ivan começa a cruzar-se com outros caçadores (todos bem mais experientes e mais bem armados do que ele), xomeçando a espalhar-se o boato de que o Tigre já teria sido entregue ao Czar.

Após um período de três meses sem nenhum novo relato, sabe-se que o tigre voltou a atacar uma aldeia, sendo afugentado por um viajante. Quando questionado por Ivan, este é informado que “Este animal cheira o medo. Só ataca quem o teme…”


Ivan resolve então traçar um plano e, convencendo um grupo de camponeses a servir de “isco”, armar uma emboscada ao Tigre.
Neste ponto, percebemos que o papel de predador e presa se misturam e, para Ivan, a força motriz da sua demanda continua a ser a ambição, levando-o a um ato completamente egoísta e mesquinho.

O final acaba por não ser completamente previsível, sendo ainda assim justo e compatível com a história.

A narrativa progride linearmente, sem saltos cronológicos, num ritmo e num ambiente que, talvez por se passar na Sibéria, lembra um conto tradicional russo. O texto é acompanhado de belíssimas ilustrações, de David de las Heras, que complementam o texto e às quais vale a pena prestar atenção.

sábado, 21 de setembro de 2024

#023 | Serotonina, de Michel Houellebecq

Autor: Michel Houellebecq (França)
Título Original: Sérotonine (2019)
Editora: Alfaguara Portugal
Edição: 1ª Edição, Maio 2019 (280 págs.)
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Já havia lido, deste autor, lá por finais de 2016, o livro “Submissão”.
Quando tive que reiniciar a toma de um fármaco inibidor seletivo de recaptação de serotonina, lembrei-me que tinha este título estacionado na estante.

Sinopse

Este livro conta-nos a história de Florent-Claude Labrouste, um homem de quarenta e seis anos, funcionário do Ministério da Agricultura que detesta o seu nome. 
Confrontado com o diagnóstico de depressão, Florent-Claude inicia a toma de um antidepressivo – o Captorix – contando-nos, logo nas primeiras páginas que “os efeitos secundários indesejáveis mais frequentemente observados do Captorix são as náuseas, a diminuição da líbido e a impotência” e que “Nunca tinha tido náuseas.


A história começa, contudo, num momento anterior, em que Florent-Claude divide o apartamento com Yuzu, a namorada japonesa, muitos anos mais jovem, curadora da Casa da Cultura do Japão, percebendo-se rapidamente que a relação esmoreceu e que já não existe qualquer sentimento entre ambos.

Numa noite, igual a tantas outras, Florent-Claude vai fazendo zapping na televisão, deparando-se, a dada altura, com o programa “Voluntariamente Desaparecidos”, onde se contam diversos casos de pessoas que decidiram desaparecer para sempre, rumo ao anonimato.
Entretanto, a descoberta de uns vídeos comprometedores da namorada, que ele planeava já há muito abandonar, funciona como gatilho que o leva a despedir-se de si mesmo. Atendendo à sua existência miserável e inspirado no programa de televisão referido, Florent-Claude resolve desaparecer: Deixa o emprego, a namorada, sai de casa, e aluga um quarto de hotel, tentando permanecer o mais anónimo e discreto possível. Dedica os dias a divagar e deambular pelos bares, restaurantes e lojas da cidade, numa rotina perfeitamente homogénea e desprovida de emoção, tornando-se cada vez mais apático ao que o rodeia e cada vez mais depressivo.

Quando, em visita a um médico (que consultara apenas uma vez, mas que lhe parece de confiança) lhe é prescrito Captorix, vamos percebendo como este fármaco lhe devolve a possibilidade de aguentar o dia-a-dia, mas lhe rouba todo o tesão e a libido, que poucos homens estariam dispostos a perder.

É neste estado mental que a história de Florent-Claude nos vai sendo contada, alternando entre momentos presentes e rememorações do passado, recordando-se do seu tempo de juventude, dos amigos de faculdade, do suicídio dos pais e, principalmente, das relações amorosas vividas.
A passagem do tempo parece por vezes demarcada pela relação do momento, existindo sempre uma tónica maior no lado sexual do que no lado romântico da mesma (um grande exemplo disso, é o facto do autor nunca recorrer ao eufemismo “fazer amor” e falar sempre em “foder”. Mas, para quem já leu Laferrière, isto é para meninos, certo?)

Percebemos, contudo, que uma relação em particular marcou a vida de Florent-Claude, tornando-se, na fase presente da sua vida, quase uma obsessão reviver um vislumbre desse “amor”.

A minha experiência de leitura

Gosto particularmente de livros sobre depressão e deprimidos. Vivo a depressão, de forma intermitente, no meu dia-a-dia e sinto que é difícil por em palavras aquilo que se sente. Ou melhor, deixa de se sentir.

Apesar de ter encontrado passagens nas quais identifiquei as marcas da depressão, este livro traz, para mim, uma perspetiva e um pano de fundo diferentes. Primeiramente por se tratar de uma perspetiva masculina e, em segundo lugar, por apesar de relatar uma vivência na primeira pessoa, se perceber que o problema de depressão não é necessariamente de índole individual, mas sim social, quer pela fragilidade dos laços, quer pela impotência perante as pressões do capitalismo (sim, no meio disto Houellebecq consegue fazer uma crítica aos problemas que a UE causou aos agricultores da França, com a sua intransigência em matéria de quotas leiteiras, assentes numa ideologia de  comércio livre).

“Seria eu capaz de ser feliz na solidão? Não acreditava nisso. Seria capaz de ser feliz no geral? É o tipo de pergunta que, creio, devem evitar fazer-se” (pág. 73)

Dizer que este é livro sobre um homem deprimido que sempre valorizou o sexo e que, neste momento, se encontra impotente, seria redutor. Contudo, em muitos momentos, lemos sobre as suas relações quase como uma ode ao seu próprio pénis. Aos momentos gloriosos por ele vividos. 
As descrições de sexo são bastante gráficas, frequentemente misóginas, embora procurem retratar o estado de decadência em que se encontram as relações.
Não obstante, houve dois momentos em que achei o grafismo excessivo e desnecessário (uma envolvendo animais e outra a indiferença do personagem perante a identificação de um pedófilo).

Não obstante, não podemos tirar ao autor o mérito de abordar fria e diretamente questões tabu (como a zoofilia, a pedofilia, e mesmo o homicídio de uma criança), apresentando-nos um retrato da tristeza, da solidão, assim como da estranha volúpia que há no desejo de auto-extinção.